O que está escondido pode ser acobertado?
Existe um velho ditado que diz: “O que os olhos
não veem o coração não sente”. Será que podemos afirmar que se trata de uma
verdade incondicional? Ou poderíamos citar outro provérbio que eu ouvia de
minha mãe: “Por fora bela viola, por dentro, pão bolorento”. Vamos aos fatos,
porque contra fatos não há argumentos.
O apartamento fora todo reformado. Paredes, pisos,
encanamentos, fiação. O que se via e o que se escondia. Tudo estava nos planos
da reforma. De dentro para fora. Do interior para o exterior.
O banheiro social não fugira à regra. Fora
cuidadosamente planejado. Paredes expostas e abertas deixavam à mostra os
encanamentos novos e os conduítes totalmente desobstruídos.
Todo mundo sabe que quando uma reforma está
sendo realizada, todo cuidado é pouco. “Um olho no peixe, outro no gato”. Não
dá para relaxar. Reforma é tarefa árdua e estressante e quem não quer se
arriscar, ou não tem tempo para acompanhar é melhor nem começar.
O bom mestre de obras não concorda com “O que
os olhos não veem o coração não sente”, mas nem sempre conseguimos um mestre
eficiente e cumpridor de seus deveres mais minuciosos. O olhar deve estar
sempre atento e a presença constante faz toda a diferença. Meu sogro era mestre
e sabia bem que “Quando o gato não está os ratos fazem a festa”. Jamais
descuidava de suas obrigações em uma obra. O material tem que ser o melhor e o
correto, mas a maneira de se fazer o serviço é de importância fundamental,
dizia ele.
Certa vez, ao inspecionar um sobrado que
fazíamos para nossa família, meu sogro me disse todo orgulhoso: “Vocês pediram
um sobrado, mas aqui tem fundação para quatro andares. Tudo muito bem feito”.
Naquela época tínhamos apenas quatro filhos e ele pensava no futuro das
crianças. Hoje teria que fazer fundação para sete andares...
Esse trabalho bem feito que não aparece é o que
sustenta uma casa bem-feita. Esse olhar atento do mestre de obras ao que vai
ficar por baixo do piso, entre as paredes, oculto e invisível aos olhos de
todos é o que faz a água escorrer pelas torneiras e chuveiros, a luz acender ao
simples toque do interruptor, o telefone tocar quando alguém deseja te
encontrar, enfim quantas e tantas coisas que só funcionam quando alguém se
preocupou com o trabalho escondido.
É bem verdade, o leitor diria, que poucas são
as pessoas que perguntam sobre encanamentos e fiações quando estão interessadas
em uma casa. O que chama a atenção é o que salta aos olhos: azulejos e pisos bonitos
e bem colocados, torneiras cromadas e chuveiros potentes, armários funcionais e
cômodos bem dispostos. Só com o uso é que os problemas de um possível trabalho
mal feito podem surgir e, aí sim, lembramo-nos dos canos e fios que não vemos,
embora sejam tão importantes.
Foi assim com o nosso banheiro social. Apartamento
reformado, tudo arrumado e pronto para o uso. Azulejos e piso bem colocados.
Chuveiro e Box escolhidos com cuidado. Peças que valorizavam o ambiente. Espelho
e peças decorativas para torná-lo mais agradável. Toalhas e tapetes
contrastando com as cores suaves. Pronto. Bonito. Funcional.
Será?
Não demorou muito e o vizinho do andar de baixo
interfona para avisar que há um vazamento em nosso banheiro e que o mesmo está
afetando o teto de seu banheiro.
Como? Acabamos de reformar. Tudo trocado. Tudo
tão perfeito. Descemos para olhar o famigerado teto. Uma mistura de decepção,
acabrunhamento, tristeza ao deparar com o lustre do vizinho cheio de água. Água
que gotejava sem parar como a martelar nosso coração. Algo precisava ser feito:
procurar a fonte do vazamento e para isso era preciso quebrar.
Passados alguns poucos dias começa o trabalho porque
“Não adianta chorar pelo leite derramado”. O que é preciso fazer deve ser feito
o mais rápido possível. E quem mora em prédio sabe bem disso como ninguém mais.
Chateação e dor de cabeça à parte, vimos o
banheiro ser quebrado, detonado à procura do vazamento que gerou toda a
bagunça. Depois de martelar aqui e ali, o pedreiro aponta para uma trinca,
muito fina, muito pequena em um dos canos. É aqui. Tira e troca. Arruma e
espera. Verifica e aguarda. Parou de vazar? Parece que sim. Que bom! Hora de
fechar e embelezar tudo de novo.
Volta tudo ao normal no apartamento e na casa
do vizinho. Podemos respirar aliviados. Será?
“Água mole em pedra dura tanto bate até que
fura”. E não é que fura mesmo? Passados alguns meses o vizinho toca a campainha
e mostra, de cara, todo seu descontentamento.
- Está vazando de novo.
A tristeza estampada no rosto não me permitiu
disfarçar o incômodo da visita que trazia a notícia inesperada. Como pode? O
serviço acabou de ser feito. Chamamos meu encanador, seu encanador ou o
encanador que vem dos palpites alheios? Meu encanador.
Lá vem ele novamente e coçando a cabeça vai
logo dizendo que “água é coisa danada”. Se tiver um espaço, minúsculo que seja,
encontrará um jeito de se espalhar e fazer estrago.
Quebramos a segunda vez e para encurtar a
história, na terceira decidimos não usar mais o chuveiro. Conhece aquela do
banheiro funcional que virou lavabo? Pois é essa mesmo. Afinal, temos outros
dois chuveiros. E a síndrome de Polyana acabou se instalando de tal forma que
vimos que era melhor assim: agora temos um lavabo. Que bom!!!
Sempre quis ter um lavabo (com um chuveiro de
enfeite).
Volta quase tudo ao normal no apartamento e na
casa do vizinho. Podemos desfrutar de nosso novo lavabo com chuveiro
decorativo. E o vizinho pode ficar feliz e sorrir ao encontrar-nos no elevador.
Será?
Dessa vez a visita do morador de baixo demorou
um pouco mais para acontecer, mas lá vem ele novamente com ar de exausta
chateação:
- Está vazando. De novo.
Confesso que pensei em fechar a porta e mandar
o “chato” vizinho embora. Pensamento rápido, mas verdadeiro. De volta a minha
normalidade pensei em transformar o fatídico banheiro/lavabo em uma despensa.
Até imaginei as prateleiras sendo colocadas nas paredes depois de fechados
todos os canos e passagens. Ou poderia ser uma extensão da lavanderia. Um lugar
para guardar as roupas. Um lugar onde não houvesse espaço para canos e água fugitiva.
Meus pensamentos voaram longe e ao retornar lá estava ele. O vizinho. Esperando
uma resposta.
O “quebra tudo” vai começar novamente, não
porque eu deseje ter um banheiro ou um lavabo, mas porque o vizinho não tem
culpa do que acontece veladamente no interior das paredes de minha casa. O
banheiro será investigado na próxima semana.
Tudo é para o bem. E como acredito que tudo nos
remete à reflexão, vamos aproveitar o momento e tirar desse vazamento algum
proveito.
Às vezes, as coisas em nossa vida nos parecem
estar muito bem. Aparentemente, tudo continua em ordem e obedecendo a seus
propósitos e objetivos.
Aí chega alguém e diz que é preciso tomar
certos cuidados, que as coisas não estão tão boas quanto parecem e uma atenção
maior deve ser levada em conta.
Podemos agir de duas formas diante do “vizinho
que nos alerta sobre o vazamento”:
Ou dizemos a ele que não está acontecendo nada
de ruim, que tudo está como antes. Nada foi mudado. E ainda o convidamos a ter
mais fé, mais confiança, pois tudo parece tão lindo como sempre foi, ou nos enchemos
de coragem e começamos a procurar o “vazamento” que há de pôr abaixo tudo de
bom que foi construído.
A primeira opção é mais cômoda e por um tempo
causa desconforto apenas a poucas pessoas. A maioria não sente o que está
acontecendo como não sentiam os moradores do apartamento que causava o
vazamento, nem os outros moradores do prédio. Apenas o vizinho de baixo sentia
claramente os problemas causados. Só ele sofria as consequências naquele
momento.
Na vida também é assim. Muitas vezes a grande e
imensa maioria não percebe o que uma mudança ainda não tão exposta, pode vir a
causar de malefícios. Isso não quer dizer que os malefícios não estejam
acontecendo. Eles podem estar apenas, camuflados.
A segunda opção é muito mais dolorosa, porque
causa desconforto e incômodo a quem precisa realizar as mudanças e nem sempre
elas estão às claras e visíveis aos interessados.
Nessa escolha árdua e muitas vezes, complicada,
às vezes, é preciso expor aquilo que se gostaria de deixar oculto: a fissura, a
trinca que causa o problema. Não é tarefa fácil. É preciso ter coragem para
derrubar a parede que, externamente, está tão bonita e bem acabada.
A escolha do que se deve fazer é sempre
custosa, porque engloba muitos fatores. É mais fácil rotular o vizinho de baixo
de “chato”, do que levar em consideração o que ele nos fala. É mais fácil dizer
que tudo continua igual, do que reconhecer as fissuras que causam problemas. É
mais fácil fingir que nada está acontecendo, do que arrebentar as “paredes” que
escondem o mal.
É mais fácil, mas nem sempre o caminho mais
curto é o melhor caminho. Até a Chapeuzinho Vermelho descobriu isso.
Quantas reflexões podemos tirar de um vazamento
no banheiro do 7º andar de um prédio de 16 andares. Quantas coisas a se pensar
e aplicar para a vida cotidiana. Quanto mal evitado se o problema for resolvido
e quanto mal realizado se deixá-lo disfarçado.
E se tudo tivesse acontecido no 16º? Quanta
responsabilidade na escolha do que fazer... O que os olhos não veem o coração
não sente no primeiro momento, mas sofrerá as consequências mais adiante, com
certeza.
É. Nisso meu sogro estava certo e tinha muita
razão:
“O material tem que ser o melhor e o correto,
mas a maneira de se fazer o serviço é de importância fundamental”.
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