A Boneca - 43 anos depois...

 

Grandes histórias têm início, muitas vezes, de forma simples e trivial. Podem parecer corriqueiras, com aquela pegada de "Já sei como vai terminar" ou "O que será que vem pela frente?", mas nem  todas as histórias terminam do mesmo jeito. Ainda bem.

Há 43 anos eu e Valter começamos nosso namoro. Sim!!! Marcamos um encontro no dia 16 de agosto de 1981, num barzinho, na Penha, chamado Cochicho. Nunca estivera lá, mas já tinha ouvido falar que o lugar era legal e sossegado. Ele, com certeza, não conhecia mesmo. 

Era um lugar pequeno, tranquilo, luz não muito forte e propício para conversar. Poucas mesas, cadeiras estofadas. Tudo num tom mais escuro. Lembro que o garçom chegou e logo foi perguntando o que eu gostaria de beber. 
- Uma cerveja - respondi.

- Pra mim, um refrigerante, por favor - disse ele.

Ri de nervoso, meio sem graça. Tentei mudar o pedido, mas ele disse que não tinha problema. Que tomasse minha cerveja com tranquilidade. Diferenças, diferenças... Seriam só diferenças?

Assim começava o nosso namoro. É isso aí, turminha! A gente não enrolava. Se saía com alguém é porque estava a fim de namorar. 

Fomos conversando e lá pelas tantas, não tantas assim, porque às 22h eu tinha que estar em casa, senão o bicho pegava feio para o meu lado, Valter começou a contar uma história: A Boneca de G. Lenôtre. Olha aí as diferenças surgindo novamente. Tudo para melhor. Muito melhor do que eu poderia querer e imaginar. 

Que história mais linda!!! Eu nunca havia conhecido ninguém assim. Alguém que saísse comigo e me contasse algo tão bonito. Nesse momento o "já sei como vai terminar" sumiu da minha cabeça e a única frase que eu conseguia pensar era "O que será que vem pela frente?"


Que bom!!! Que alegria poder estar contando isso 43 anos depois com a mesma história, com a mesma pessoa, com o amor da minha vida. Valter continua me encantando e acho que é esse o grande mistério do amor duradouro: fazer brilhar a chama todos os dias. Às vezes é muito fácil, outras vezes o mais rápido e mais esperto dá uma ajuda e sopra a velinha. A chama brilhando é a chave de tudo. 

Feliz 43 anos para nós! 

Ah, só para constar que hoje ele pede a cerveja e eu, o refrigerante. A gente continua se completando como nunca!!! Está tudo certo, tudo como Deus planejou pra nós. 

E aqui fica o conto A Boneca de G. Lenôtre. Boa leitura!

A BONECA

 

Lembro-me ainda muito bem da velha marquesa de Flavigny, que conheci quando pequenino, sempre sorridente e serena, sentada numa antiga poltrona de veludo cor-de-rosa, que fazia realçar os seus cabelos grisalhos e as grandes toucas de renda enfeitadas com laços.

 A seu lado estava quase sempre, numa cadeira baixa, uma mulher da mesma idade, sorridente como ela, serena como ela. Chamavam-na menina Odília. Não era uma criada. Entre as duas velhinhas parecia existir grande intimidade. Enquanto as duas faziam horrendos saiotes de malha azul, que distribuíam aos pobres às quintas-feiras de manhã, com um pedaço de pão e algumas moedas, trocavam em voz baixa, em tom quase cúmplice, intermináveis confidências.

 Em certos dias de grandes arrumações, quando não tricotavam a malha, as duas amigas iam dar volta aos armários — enormes bisarmas de carvalho polido, com longos puxadores de cobre e fechaduras altas e estreitas, recortadas em arabescos. Abriam caixas, perfumavam a roupa com alfazema, forravam as prateleiras de belas toalhas bordadas, espanavam e limpavam durante todo o dia.

 Nós, as crianças, tínhamos licença de assistir àquele espetáculo salutar, com a condição de não mexer em nada.

 No fundo de um desses misteriosos armários, como num santuário, repousava, de pé na sua caixa de vidro, certo objeto pelo qual as duas senhoras pareciam ter uma espécie de veneração. Era uma grande boneca vestida à moda antiga, com um vestido de seda desbotado; os anos tinham-lhe comido quase todo o cabelo; tinha o nariz partido, o verniz lascado no rosto e nas mãos, e lembro-me de ter visto dela só um sapato, sapatinho velho, de marroquim estalado, com a fivela de prata enegrecida e um salto que fora vermelho. Quando chegavam ao imponente brinquedo, a marquesa e a menina Odília deslocavam-no com mil cuidados, como meninos de coro que pegassem num relicário; falavam dele em voz receosa, em frases curtas:

 

— Olha, já lhe caiu mais cabelo... O vestido está mesmo desfiado. Este dedo solta-se, não demora...

 

 Levantavam com mil precauções a tampa de vidro, renovavam a pimenta que usavam contra traça, alisavam a saia, vincando-a delicadamente com a unha... Depois tornavam a pôr a boneca no seu lugar, de pé na melhor prateleira, como num altar.

 

— Está bem segura, menina? — perguntava a marquesa. Era assim que tratava sempre a sua companheira. Esta tratava-a sempre familiarmente por Madame Solange, sem nunca lhe dar o título, falando com um vago sotaque alsaciano, mas sem rudeza e como esbatido pelo tempo.

 

 Não sabíamos nada sobre a história das duas senhoras e da boneca. Um dia — era na véspera de Natal de um ano que já vai muito longe — fomos de repente iniciados no mistério.

 Nesse dia, Odília e a marquesa tinham conversado com mais animação que de costume. Ao fim da tarde, ambas tinham ficado caladas e recolhidas. Com as mãos caídas no regaço, olhavam-se enternecidas, e percebia-se que mergulhavam pouco a pouco numa recordação comum. Quando anoiteceu de todo, Odília acendeu as velas, puxou de um molho de chaves e abriu o armário. Tiraram a boneca da caixa. Nas suas sedas desbotadas, sem cabelo, parecia mais velha que as duas senhoras, que a passavam de mão em mão, com gestos cautelosos, quase ternos. A marquesa a pôs no colo, endireitou-lhe ao longo do corpo o braço de gesso, que rangeu levemente, como num gemido. Ficou a olhar para a “senhora”, com um sorriso de carinho.

 

— Ó menina — disse, como se falasse com a boneca, — e se eu contasse a nossa história a estes pequenos?

 

 Odília acenou com a cabeça, em sinal de assentimento. A marquesa mandou-nos sentar à sua volta. Tinha a boneca sentada nos joelhos, e parecia conversar com ela.

 Começou por dizer que, muitos anos antes, quando era ainda uma menina da nossa idade, a guerra civil devastava a Bretanha, sua terra natal. Era a época do grande pavor.

 Logo em princípios do ano de 1792, os pais de Solange tinham emigrado. Com receio dos perigos do exílio, confiaram-na aos cuidados de uma camponesa de Ploubalay, aldeia vizinha do solar, perto da costa de Saint-Malo. Estavam convencidos de que a “boa causa” triunfaria, e de que a sua ausência seria breve.

 Mas, quase logo a seguir, a fronteira fora fechada. Havia leis impiedosas contra os emigrados que tentassem voltar à França. Uma terrível tempestade sangrenta assolava a Bretanha. Solange, enquanto durou o vendaval, permaneceu em casa dos aldeães a quem fora entregue, os Rouault, gente boa mas que vivia receosa, sem notícias dos pais da menina nem possibilidade de comunicar-se com eles, pois a lei castigava com pena de morte a menor tentativa de correspondência com os emigrados.

 Ploubalay é uma aldeia grande, a três léguas de Saint-Malo, distante da costa cerca de meia hora. A costa é eriçada de rochedos avermelhados e protegida por um arquipélago de recifes que o mar fustiga sem cessar, e que tornam perigosa qualquer tentativa de desembarque. Os “azuis” ocupavam a aldeia, donde tinham expulsado os “chouans”. O sargento que os comandava era um desses subalternos, como muitos que havia no exército revolucionário: patriota rude, inflexível e obstinado. Era alsaciano, e chamava-se Metzger. Toda a aldeia o temia. A pequena Solange, sobretudo, punha-se a tremer, na soleira da porta dos Rouault, mal avistava esse homem terrível de grandes bigodes, sobrancelhas espessas, olhar oblíquo, voz estrondosa e pronúncia áspera. Era o seu pesadelo. Quando não andava em reconhecimento com a brigada, o sargento Metzger estava sempre à porta do posto instalado na igreja ocupada, a cavalo numa cadeira, fumando obstinadamente o seu cachimbo. Era dali que vigiava, com ar feroz, as três ruas da aldeia.

 Um dia, Solange tinha ido buscar pão para a tia Rouault, e já vinha de volta, com a pesada broa negra enrolada no avental, quando viu, no lugar do costume em frente do portal da igreja, o sargento Metzger, que a seguia de longe com os seus olhos grandes. A pequena hesitou. Vontade de fugir não lhe faltava, mas teve medo. Enchendo-se de coragem, começou a andar muito depressa, como qualquer menina que tivesse ido aos recados com a recomendação de não se demorar. Apertava o passo, rente às casas, sem voltar a cabeça. Mas, quando já julgava ter escapado ao perigo, ouviu a voz retumbante do sargento:

 

— Alto aí, pequena!

 

 A criança sentiu o coração parar no peito; ficou pregada ao chão, gelada de pavor, quase a desfalecer.

 

— Vem cá... Anda, mais perto! — continuou a voz.

 

 Solange obedeceu, quase sem saber o que fazia. Agora estava a dois passos do sargento, e ainda não se atrevera a levantar os olhos. O homem deixou-a assim estar, sem dizer palavra. Por fim, num tom que fez estremecer a criança como o súbito estourar de um trovão, perguntou:

 

— És uma miúda aristocrata, heim?

 

 A pequena ficou de boca aberta, sem voz, encomendando-se a Deus. Não tinha compreendido lá muito bem, mas uma coisa sabia: essa palavra aristocrata designava pessoas que eram condenadas à morte.

 

— Que idade tens? — perguntou o homem.

 

 Numa pobre vozinha enrouquecida, balbuciante de terror, respondeu:

 

— Oito anos...

 

 Ia acrescentar cortesmente “senhor”... Mas engoliu a palavra em tempo, por instinto, certa de que, se a pronunciasse, o soldado a mataria logo ali. Contudo, naquele momento ele não parecia muito disposto a isso. Murmurou:

 

— Oito anos... Oito anos! Exatamente...

 

 E logo a seguir acrescentou:

 

— Estás crescidinha e forte para a idade.

 

 Disse isto num tom tão diferente, que a menina, surpreendida, levantou os olhos para ele. Era medonho, com o bicórnio de bicos para os lados, donde pendia uma borla de crina vermelha, a face tisnada, o cachimbo enegrecido, as mangas agaloadas, os talabartes brancos cruzados no peito, o grande sabre, as polainas enlameadas. E, pior que tudo, os olhos, os olhos profundos e penetrantes, que pareciam devorá-la.

 

— Vamos, põe-te a andar — ordenou.

 

 A menina deu meia-volta e continuou a correr para casa, ainda trêmula e fria de emoção.

 A partir desse dia, começou a sentir-se espiada pelo sargento. Quando ele passava pela porta dos Rouault, à frente dos soldados, deitava um olhar para dentro da casa. Se a encontrava nas ruas, parava e ficava a segui-la com os olhos. E naquela voz áspera, com a pronúncia diabólica que a fazia arrepiar, chamava-a, entre grandes risadas:

 

— Ah! Ah! Ah! Pequena...

 

 Por sua vontade, Solange agora nunca saía de casa. Mas a tia Rouault, calculando que a garota não tornaria a ver os pais, e não sendo pessoa para dar hospedagem de graça, utilizava-a para fazer os recados. Assim obrigada a encarar todos os dias aquela sua sombra negra, Solange acabara por sentir-se condenada à morte. O malvado, pelo visto, só esperava ocasião para dar cabo dela. E convenceu-se disso certo dia em que, quando lavava hortaliças no chafariz da praça, o sargento a interpelou bruscamente:

 

— Como te chamas, menina?

 

 Pensando que chegara a sua hora, respondeu, resignada:

 

— Solange.

 

 O sargento exclamou:

 

— Solange! — ele pronunciava Zôlange. — Que nome patusco!

 

 Apalpou-lhe os braços e levantou-a do chão, como se quisesse avaliar-lhe o peso.

 

— Oito anos! — exclamou. — Oito anos! O que isto cresce!...

 

 A pequena julgou-se nas mãos de uma fera, que apreciasse a presa já segura. Com aquela perspectiva, a vida para ela tornou-se lúgubre.

 Dezembro chegara, com as noites sinistras, os dias sem sol. Não se passava um dia sem que os “azuis” prendessem um emigrado. Os exilados passavam tal miséria em Jersey ou Londres, ansiavam tão ardentemente por voltar à França, que muitos deles não resistiam a desembarcar. Os “azuis”, emboscados em terra, davam-lhes caça nos rochedos do litoral ou na charneca. Para apanhar as suas presas, tinham treinado enormes cães, que farejavam o rastro dos infelizes e iam descobri-los nos fossos por onde se arrastavam durante a noite, ou nos juncais onde passavam o dia alapardados. Depois, a gente de Ploubalay via-os atravessar a aldeia acorrentados, com as roupas em farrapos, entre soldados que os levavam a Saint-Malo ou a Rennes, onde eram fuzilados após julgamento sumário. A lei era impiedosa e irrevogável: emigrado que apanhassem era homem morto.

 Quando chegou a véspera de Natal desse ano de 1793, ninguém deu mostras de pensar na doce festa de outrora. A igreja estava fechada, os sinos mudos. A noite caiu, muito enevoada. Ao longo do dia se tinham ouvido ladrar os cães, do lado da planície Bodard: os “azuis” deviam ter feito boa caçada...

 No sobrado da casa dos Rouault, a pequena Solange dormia numa água-furtada contígua a um celeiro cheio de escuridão e de terror, que a fazia arrepiar quando à noite, muito quieta na enxerga, pensava em todos os misteriosos perigos que podiam estar do outro lado da porta fechada.

 Nessa noite Solange estava muito triste: enquanto se despia a tiritar, lembrava-se de outras vésperas de Natal, essas bem alegres, quando ainda estava com os pais, e sentia o coraçãozinho cheio de afeto e ternura. Como o despertar era radioso, nesses Natais passados! Que êxtases, diante da chaminé cheia de brinquedos, de gulodices, de embrulhos com laçarotes de fita! Enquanto pensava em tudo isso, segurava nas mãozinhas cansadas os tamancos grosseiros que dessa vez não iria pôr na chaminé, sabendo de antemão que haviam de ficar vazios, como no ano passado... Talvez o Menino Jesus tivesse medo, e era por isso que já não vinha à França...

 De repente, julgou ouvir ruído no celeiro. Assoprou a vela, muito depressa, e enfiou-se debaixo do cobertor. Depois adormeceu. Enquanto dormia, pareceu-lhe que uma porta se abria devagarinho, e que uma sombra entrava na água-furtada. Arriscou um olhar fora dos cobertores, para ver o que lhe mostraria a luz do luar que inundava o quarto.

 Estaria sonhando? Percebeu que a sombra era um homem, vestido como esses emigrados que ela via passar pelas ruas da aldeia, quando os levavam presos para Saint-Malo, e ouviu uma voz meiga que dizia:

 

— Não tenhas medo, minha pequenina, não
tenhas medo!

 

 Solange não tinha medo. Sentiu afastarem-lhe com cuidado os caracóis que lhe cobriam a testa. Um raio de luar atravessava a janela sem cortinas e batia em cheio na cama. O homem que entrara contemplava-a:

 

— Como estás bonita, minha Solange! E crescida, e forte!

 

 Não se cansava de olhar para ela. E de repente tomou-a nos braços, apertou-a desesperadamente ao peito e cobriu-a de beijos. A menina já não sabia se estava acordada ou sonhando, mas pensou de repente que, se o pai fosse vivo e estivesse ali, diria aquelas coisas, e seriam assim os seus afagos, aquele abraço, aqueles beijos... Pareceu-lhe que o homem se ajoelhava à beira da cama, julgou ouvi-lo soluçar, aninhou-se-lhe nos braços e tornou a adormecer, inundada de felicidade.

 De manhãzinha, quando abriu os olhos, custou-lhe ordenar as suas recordações. Mas depressa recuperou a consciência da realidade: não havia dúvida, tinha sido tudo um sonho. O quarto estava vazio, e a porta do celeiro fechada. No andar de baixo, ouvia como de costume o passo pesado da tia Rouault, nas suas voltas da manhã. Solange sentou-se na cama, e de repente soltou um grito de alegria. Sobre os tamanquinhos, acabava de ver, no esplendor de um vestido verde claro, uma grande boneca majestosa e sorridente, uma boneca vestida como uma lady, com lindos caracóis sedosos a emoldurar as faces de esmalte, um xale de renda cruzado no peito e sapatinhos de marroquim com fivelas de prata reluzentes.

 A criança caiu de joelhos em frente da “senhora”, e batizou-a logo com o nome de Yvonne. Vestiu-se num abrir e fechar de olhos, e levando a “filha” nos braços, desceu à cozinha. A tia Rouault, ao vê-la aparecer com aquele brinquedo maravilhoso, que excedia tudo quanto a sua imaginação podia conceber, exclamou, estupefata:

 

— Santo Nome de Deus! Quem te deu essa boneca, Solange?

 

— Foi o Menino Jesus... — respondeu a menina, com toda a simplicidade.

 

 A bretã ficou de boca aberta. Embora fosse muito crente, aquele milagre, ainda assim, parecia-lhe ultrapassar os limites do poder divino. Mas a evidência era esmagadora. Ela bem sabia que ninguém teria podido comprar em Ploubalay semelhante maravilha, nem mesmo em Matignon, nem sequer em Saint-Malo ou em Rennes. O prodígio encheu-a de respeito. Examinou, sem quase se atrever a tocar-lhe, a “senhora” que Solange lhe estendeu triunfalmente. Depois chamou o marido:

 

— Venha ver, Rouault! Venha ver o que o Menino Jesus trouxe para a nossa menina!

 

 O espanto de Rouault não foi tão grande. Era uma alma simples, e nada percebia de sedas e enfeites. Mas já as vizinhas se aproximavam, e falavam todas ao mesmo tempo, pondo as mãos em sinal de admiração. Algumas curvavam-se ingenuamente ante o prodígio indiscutível. Outras, mais céticas, ficavam desnorteadas, incapazes de encontrar explicação satisfatória. Solange, essa, importava-se pouco com o pasmo delas. Embalava Yvonne, abraçava-a com cuidado, mal ousando aflorar com os lábios os caracóis loiros, as faces lustrosas da sua “filha”. Levou-a à janela e mostrou-lhe a estreita perspectiva da rua direita de Ploubalay. Depois a tia Rouault voltou às coisas práticas, e a mandou ao outro extremo da aldeia para comprar favas. Ela saiu radiante, levando a boneca ao colo.

 O grande acontecimento já era sabido em metade da aldeia. As mulheres vinham às portas, para ver. Solange passava, orgulhosa e grave, compenetrada da sua importância. Quando passou em frente da igreja, onde o sargento Metzger como de costume estava sentado na sua cadeira, nem pensou em se desviar, como das outras vezes. Que perigo podia ameaçá-la num dia como aquele? A sua felicidade interior era tão perfeita, que não tinha medo de nada nem de ninguém. E quando o militar a chamou, perguntando-lhe o que tinha consigo, parou com desenvoltura e respondeu, aproximando-se dele:

 

— É uma boneca.

 

— Que linda boneca! Onde é que a arranjaste, menina?

 

— Senhor sargento, foi o Menino Jesus que a trouxe para mim.

 

 O jacobino levantou-se, terrível, e afastou a cadeira com um pontapé.

 

— O que é que estás dizendo? — gritou.

 

— É uma boneca que o Menino Jesus me trouxe, por ser Natal.

 

 Metzger estava espantado com tanta audácia:

 

— Imaginas que eu engulo essas?!...

 

 Mas, ante o ar de candura da menina, calou-se, tirou-lhe a boneca e examinou-a minuciosamente.

 

— Uma bela dama, sim, senhora! Uma verdadeira lady! E já viste o que está escrito aqui na sola dos sapatos? Berkint - London. Então é inglês o teu Menino Jesus?

 

— Não sei, senhor sargento — respondeu Solange, pegando outra vez na boneca, mas sentindo estragada toda a alegria.

 

— Já vamos ver isso — trovejou o sargento.

 

 E voltando-se para o posto, chamou:

 

— La Cocarde!

 

 Apareceu um cabo.

 

— Ontem entrou alguém na aldeia?

 

— Não me parece, meu sargento. Os homens estiveram sempre alerta. É verdade que ao anoitecer os cães ladraram de maneira esquisita, mas nós batemos as moitas e não encontramos nada.

 

— Está bem. Chama os teus homens.

 

 Pôs a patrona ao ombro, afivelou o cinturão, pegou a espingarda e, à frente da brigada, dirigiu-se para a casa dos Rouault. Solange, instintivamente angustiada, caminhava ao lado dele, estugando o passo para o acompanhar, apertando ao coração a linda Yvonne.

 Ao chegarem à casa dos Rouault, o sargento dispôs os seus homens: dois de sentinela em frente da porta e outros no pomar atrás da casa, que ficou cercada por todos os lados. Depois, seguido pelos restantes soldados, entrou no jardim da casa levando Solange pela mão. Sentou-se num banco, pôs a pequena entre os joelhos e disse, num tom mais humano, certamente para a conquistar:

 

— Vamos, menina: Conta-me tudo!

 

 Com o coração apertado, um pouco ofegante, Solange começou em voz muito baixa a sua longa narrativa. Contou o “sonho”, o homem que julgara ver entrar no quarto, a ilusão de ter sido abraçada e beijada e, de manhã, a surpresa ao dar com a linda boneca. O sargento não perdia palavra. De repente, voltando-se para os soldados que assistiam de pé ao interrogatório, ordenou:

 

— Vamos, meia-volta! Ponham-se lá fora de sentinela. Façam fogo sobre o primeiro que tentar fugir daqui.

 

 Os homens saíram, e ele ficou só com a menina.

 

— Com que então, pequena, dizes que o tal homem te beijou, que te chamava minha pequenina?... Que se pôs de joelhos ao pé da tua cama e chorou?...

 

 A criança, a cada pergunta, respondia que sim, com a cabeça, sem querer mentir, mas pressentindo alguma desgraça que a ameaçava. Metzger não se deu pressa em agir. Pousou as rudes mãos nos ombros de Solange e, como se falasse consigo mesmo, disse gravemente:

 

— É claro... Também eu tenho uma filha assim, lá para os lados de Gerlsheim, na Alsácia... Também tem oito anos... E também há dois anos bem contados que não a vejo. Para a ver, mesmo estando ela dormindo, às escuras, para a beijar uma vez que fosse, para a sentir respirar no meu ombro, com os cabelinhos loiros tocando-me a cara... Sim, para isso também eu arriscaria a vida sem pensar. Os pais são todos do mesmo jeito, pelo visto...

 

 Ficou uns instantes embebido em profunda reflexão. Depois, decidindo-se bruscamente, levantou-se, sacudiu a cabeça, e voltando-se para a porta que ficara aberta, gritou:

 

— Venham cá, dois de vocês! Vamos passar uma busca na barraca.

 

 Solange soltou um grito:

 

— Senhor Sargento, espere!...

 

 Ao ouvi-lo falar, a menina compreendera tudo: era o pai que, na calada da noite, afrontando a morte para estar um instante com ela, deixara o exílio, atravessara o mar, desembarcara nos rochedos, rastejara sob a ameaça das espingardas até à aldeia... Era o pai que, pensando no Natal sem brinquedos, que ia passar a sua menina, lhe trouxera a “senhora”. Era o pai que estava lá em cima, escondido no celeiro, e que os soldados iam prender e levar acorrentado, entre quatro canos de espingarda...

 Então a pobre pequena, com o coração trespassado, agarrou-se ao sargento e, sacudida dos pés à cabeça por grandes soluços, suplicou:

 

— Espere, espere!

 

— Que mais temos? — perguntou o alsaciano, retomando a expressão brutal e a voz áspera.

 

 Solange tivera uma inspiração. Para salvar o pai, daria tudo o que tivesse. Mas só tinha a boneca, e lembrou-se de fazer um grande sacrifício.

 

— O senhor sargento tem uma filha, não tem? Da minha idade... E que não o vê há dois anos...

 

 Metzger respondeu afirmativamente, com a cabeça.

 

— Então... talvez... como o senhor não está em casa, o Menino Jesus se tenha esquecido dela... Olhe, tome a minha boneca, e mande-a para lá... Eu a dou à sua filha...

 

 O soldado curvou-se de repente para a menina e fitou-a, com os grandes olhos lacrimejantes. Respirava com ruído, os lábios tremiam sob o bigode, e o movimento dos músculos nas faces denunciava a comoção reprimida. Os dois homens que ele chamara se aproximaram.

 

— Cala-te, menina, e não tenhas medo — disse em voz baixa o sargento.

 

 Depois, dirigindo-se aos soldados:

 

— Vamos subir lá no celeiro e revistar tudo. Armas engatilhadas e olho alerta! Tu, pequena, vais adiante.

 

 Os três militares e a menina subiram a escada. Chegados à água-furtada, o sargento postou um dos seus homens à entrada do quarto e o outro perto da janela. Depois dirigiu-se para o celeiro e entrou sozinho, fechando a porta atrás de si. O coração de Solange batia como doido. Passados instantes, a porta do celeiro tornou a abrir-se, e Metzger apareceu.

 

— Está vazio — disse. — Vamos para baixo. O pássaro bateu asas. Fomos enganados.

 

 Quando se achou sozinho com Solange, na sala do andar térreo, curvou-se para ela e disse-lhe ao ouvido:

 

— Fixa bem o que te vou dizer: o “homem” pode ficar lá em cima esta noite e o dia de amanhã. Dize-lhe que esteja descansado, que ninguém o incomodará. Que saia na outra noite e vá daqui a Lancieux, e depois a Saint-Briac, onde pode embarcar. Essa região não estará vigiada: eu me encarrego de levar os meus homens para outro lado. Entendeste tudo?

 

— Sim, senhor sargento.

 

— Bom, agora a boneca. Fico com ela, e vou mandá-la para Odília, a minha filha. Fico com ela, porque mais alguém poderia estranhar, como eu estranhei, que o Menino Jesus andasse trazendo brinquedos da Inglaterra às meninas como tu. Esta “filha” ainda te daria algum desgosto. Agora, bico calado! E não te esqueças: por Lancieux e Saint-Briac.

 

 E saiu, reunindo os seus homens, que levou nessa mesma noite, com os cães policiais, numa expedição de três dias para o lado de Matignon.

 

— E aqui têm, meus meninos, a nossa história: de Yvonne, de Odília e minha — concluiu a marquesa de Flavigny. — O único drama da nossa existência. Quinze anos depois, quando me casei, fui com o marquês em passeio à Alsácia. Dirigi-me a Gerlsheim, e perguntei pelo sargento Metzger e pela sua filha Odília. Estes nomes me ficaram bem gravados na memória. Encontrei o velho soldado, na sua plantação de lúpulo. Passara à reserva, depois de ter sido condecorado em Austerlitz pelas mãos do Imperador. Muitas vezes contara a história da pequena Solange à filha, que tinha conservado preciosamente a “senhora”. Quando o sargento morreu, anos mais tarde, fui buscar Odília para a minha companhia. Ela me trouxe a Yvonne, e desde então nunca mais nós três nos separamos. 

 

                                                                                                 G. Lenôtre

 


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